Aquele tal de je ne sais quoi

Há dois séculos atrás, um imigrante desembarcava na costa do país em busca de prosperidade. Seu nome era de origem italiana, mas sua história é brasileira. Seus anos de trabalho o levaram a enxergar oportunidades que trouxeram a ele uma carreira bem-sucedida e patrimônio. Ao viver um momento de ascensão, o italiano sentiu a necessidade de algo maior, algo que iria além de todo o reconhecimento e dinheiro conquistado. Foi a partir desse desejo propulsor que nasceu o primeiro arranha-céu de São Paulo, o Edifício Martinelli. 

Após 100 anos desde a sua construção, a cidade comemora a criação de um dos prédios mais icônicos de sua história. Localizado no triângulo formado pela Rua São Bento, Avenida São João e Rua Líbero Badaró, o monumento que faz parte da criação da identidade de São Paulo não só gerou polêmica, como foi o marco da transição da cidade baixa para uma metrópole. 


Fazia algumas semanas desde que eu e meus amigos tínhamos comprado os ingressos para a festa da VHS. Nós sabíamos que aquela noite seria excepcional por dois motivos. O primeiro era porque todo o grupo estaria presente (o que era muito raro de acontecer), e o segundo motivo era porque viveríamos a experiência de curtir a estreia do novo álbum da Dua Lipa com uma das vistas mais cativantes da cidade. 

Como a festa só iniciaria após as onze da noite, combinamos de nos encontrar em qualquer “pé sujo” que a cerveja fosse menos de vinte reais. Gael indicou um bar na Praça Roosevelt que não conhecíamos. O bar tinha uma proposta diferente da qual estávamos acostumados a frequentar, e era nítido que o público-alvo era bem oposto a nós. Mas quem é que liga? Afinal, moramos em São Paulo, e um lugar que tenha mesa, bebida barata e encerra após meia-noite, pode ser uma boa ideia. 

O nome do bar é Papo, Pinga e Petisco. Para além de seu nome imemorável, o lugar dispersa sua atenção para diversas coisas ao mesmo tempo. Com sua decoração caótica e cheia de história, o lugar tem tudo a venda mas nada parece ser útil fora dali. É possível encontrar copos de cristal até uma placa de linha de ônibus desativada, dando um charme maior para a proposta do bar. Contudo, o que mais chama atenção ali é o fato de que aquele lugar foi palco para o primeiro show da Elis Regina. 

Enquanto esperávamos Laura que estava a caminho, eu e Gael nos aprofundamos nos acontecimentos recentes de nossas vidas. Ele me contava sobre esse cara que vamos chamar aqui de João. Os dois já se relacionavam há um tempo, e tudo indicava que João era seu parceiro ideal. Ao contrário de todas as experiências que Gael tinha vivido, essa era de longe a mais tranquila. Existia um controle emocional maior vindo dele, porém, João era uma pessoa que proporcionava tudo o que um dia Gael tinha idealizado para si. Ele era divertido, tinha bom papo, o sexo era incrível e possuía uma boa aparência. Além disso, era um ótimo companheiro e demonstrava se importar muito com o bem estar do meu amigo, tanto que naquela noite, tinha se perguntado se Gael queria companhia para a festa. 

“Por que você negou?” perguntei a Gael. Sem hesitação, ele respondeu que não queria aproximar João do seu grupo social porque não queria nada sério com ele. Um pouco surpresa com aquela resposta, questionei como ele não via um relacionamento com João, já que ele parecia ser o par ideal para ele. Gael não tinha uma resposta racional para aqui, mas sua convicção morava no sentimento de que João não era sua pessoa. 

Nesse momento, Laura se aproximou da nossa mesa e nos cumprimentou. Mas a sua felicidade veio quando notou que o preço do vinho branco era muito menor do que os bares que frequentávamos. Assim, concordamos em dividir uma garrafa, afim de ficar horas no bar até o início da festa. Quando o pedido chegou, Laura estava por dentro do assunto e, imprevisivelmente, contou que vivia exatamente a mesma situação que Gael. 

Laura tinha conhecido um cara que parecia ser o ideal para ela. Eles jantavam em lugares românticos, assistiam a clássicos filmados em 35mm e, para além deles dividirem gostos em comum, ele a tratava como ela sempre sonhou. Porém, isso não parecia ser o bastante para manter uma relação. Como a própria Laura citou, ele tinha tudo para ser um ótimo namorado, mas ela sabia que lá no fundo ele não era o cara certo para ela. Por essa razão, ela quis deixar ele livre para encontrar alguém que o ame. 

A caminho da festa, eu refletia sobre as declarações dos meus amigos. Por mais que eles possuam posicionamentos diferentes perante as relações, ambos vivem a mesma situação. Sendo assim, eu não podia evitar mas me questionar sobre o que nós precisamos para verdadeiramente querer estar com alguém?

Chegamos no edifício alguns minutos antes do resto do grupo, por sorte, a fila ainda não estava grande e o atendimento estava rápido o suficiente para não deixar ninguém parado. Ao entrar na recepção do prédio, não foi difícil entender o porque do investindo em manter o monumento em pé. A arquitetura única do lugar não só é do lado de fora, mas preenche todos os cantos internos do lugar.

O primeiro andar é todo revestido por granito vermelho róseo, acompanhado de detalhes dourados. Como muitos prédios antigos do centro da cidade, o teto é alto e os lustres enormes. No 26º andar, os largos corredores e as janelas redondas são o que mais chamam atenção. A estrutura é nostálgica mas moderna ao mesmo tempo. Ao subir um lance de escadas e sair para a varanda, é quase que impossível não se encantar com a vista mágica da cidade e ver o Farol Santander por um ângulo único. 

A festa era da Dua Lipa, mas a grande homenageada da noite foi a Madonna. A cada cinco músicas tocadas, um hit da diva vinha a tona. Mas isso não foi motivo para causar frustração, afinal, todos nós sabíamos que o grande protagonista da noite era o prédio ao lado, que em disparado teve mais fotos tiradas. 

Nós dançamos até o sapato recém comprado impossibilitar dar um passo. Ao contrário do foi programado, a hora de ir embora foi reduzida para antes do amanhecer – o que para mim sempre é a melhor decisão. No Uber de volta para casa, Victória me contava sobre o show que tinha ido antes de nos encontrar no Martinelli. Se qualquer outra pessoa me contasse que foi no show do McFly e depois encontrou seus amigos para uma festa da VHS, eu pensaria que era mentira, mas como era Vic, tudo era possível. 

Na manhã seguinte, o golpe da ressaca veio, e comecei a me questionar como foi que eu cheguei ali. Lembrei que misturar vinho com destilado nunca é uma boa escolha, principalmente quando tem vodca envolvida. Sem condições de fazer nada, fui tomar café com Vic em algum lugar no qual eu não tivesse que fazer esforço algum. 

Quando enfim a comida revestiu meu estômago e o café ligou a minha cabeça, passei a falar como um ser humano novamente. Vic me perguntou se Laura tinha contado que terminou com o cara que estava saindo, e confirmei. Eu comentei que tinha acreditado que ele era par ideal para Laura, e ela me cortou respondendo que como muitas coisas na vida, existe algo para além do racional que desperta o nosso interesse. Aquele tal de je ne sais quoi é o que faz querer ir além do que vimos, e nas relações isso é muito importante.

Perante aquele comentário, eu pude compreender o porque gostar de alguém é muito mais complexo do cumprir com uma lista. Nem sempre o que acreditamos ser certo para nós é o que nos atrais. Somos um poço de desejos que nem sempre temos conhecimento. Por isso que é comum gostarmos de coisas que pareçam ser inusitadas. Como a Vic colecionar Barbies, eu ter sido fã de Katy Perry e a Laura ser amar filmes de terror. Muitas vezes aquilo pode não fazer sentido, mas existe algo para além do que conseguimos explicar e, muitas vezes, esse vai ser o fator decisivo para amar alguém.

A.M. 

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