Quando se toma a decisão de ir morar em outro país uma das partes mais difíceis, se não a mais difícil, é deixar as pessoas que se ama. Hoje, nós temos a vantagem de poder se comunicar facilmente através de mensagens e vídeos, o que facilita muito o contato com aqueles que não estão por perto. Entretanto, o fuso horário, a ausência do contato físico e a rotina acabam sempre atravessando o caminho.
Já fazia alguns meses desde que tinha vindo morar no Porto, e com tanta novidade, aulas e dias agitados, alguns contatos do Brasil foram ficando mais distantes. Eu sabia que isso aconteceria de forma orgânica, já tinha passado por essa experiência da separação antes, e de certa forma já tinha criado ferramentas para lidar com a situação. Ou ao menos era isso o que eu acreditava.
Em um sábado ensolarado, acordei disposta para ficar o dia todo na cama. A semana tinha passado como jato e eu ainda estava me recuperando de todas as coisas que eu tinha feito. Tentei ser negligente com todas as tarefas que eu tinha para fazer naquele dia e só escolhi assistir a série que eu estava completamente viciada. Acabou que em dado momento meu estômago começou a gritar de fome e fui obrigada a me levantar e fazer algo para eu comer. Sem surpresa, abri o armário vazio e percebi que tinha deixado passar do limite de fazer compras, sendo obrigada mais uma vez a reagir e seguir com a lista de coisas que eu tinha para aquele dia.
O Porto possui diversas marcas de supermercado, porém, como tudo nessa terra, você tem que escolher qual é o seu preferido e se manter fiel é ele. Eu confesso que não levava isso muito a sério, mas sempre optava em ir ao Pingo Doce, pelo simples fato que era duas quadras da minha casa. De cara lavada e as roupas mais antissocial possível, lá estava eu tendo que escolher as frutas e verduras da semana. Ao passar no caixa, senti meu celular vibrar e notei que alguém estava me ligando. Era Victória.
Eu e Victória nos conhecemos em meio ao caos. Ao contrário da grande maioria das amizades que eu tenho, não nos conhecemos na época da escola e nem através do trabalho, mas nos conectamos em uma fase madura. Na época, faziam poucas semanas que eu tinha voltado ao Brasil devido a pandemia do COVID19 e a última coisa que eu queria era conhecer gente nova. Contudo, foi através de Laura que fui apresentada a mulher de 1.75 de altura que tem a personalidade e as sobrancelhas mais marcantes do mundo.
Criar afinidade com alguém na fase adulta é mais desafiador do que se parece. Ao contrário de quando se é jovem, você não precisa ter interesses em comum para gostar da outra pessoa. Muito mais complexo do que isso, você aprende a olhar para o caráter, os pequenos gestos e passa a valorizar mais uma atitude espontânea do que a banda favorita. Quando penso o que eu e Victória temos em comum, é muito mais simples encontrar similaridades na forma como vemos o mundo do que coisas mundanas.
Preocupada com a ligação, coloquei as compras nas bolsas que tinha levado e retornei à ligação assim que saí do mercado. Ela atendeu no primeiro toque:
– Oi, está tudo bem? — Perguntei com um sorriso.
– Oi amiga. Mais ou menos. Você está com tempo? — Victória respondeu com uma voz baixa e notei que uma bomba estava por vir.
– Claro Vic, estou indo para casa agora. Pode falar… — Eu respondi apoiando o celular entre a orelha e o ombro e equilibrando três bolsas diferentes entre os ombros e braços.
– Desculpa estar te ligando assim, mas eu realmente preciso desabafar algo com você. — Ela deu uma pausa — Você lembra do André?
– Quem? — Não fazia ideia quem era o cara.
– O André, meu ex-namorado, ficante… sei lá o que ele era.
– Ahh sim! O trouxão. — Desde que Victória e ele tinham terminado era só impossível não chamar ele pelo apelido que carinhosamente a Laura o tinha batizado.
– A gente saiu ontem.
– QUE? — A sacola do meu braço direito despencou na calçada em frente à minha casa. — Como assim?
– Eu não sei. Já fazia um tempo que ele estava me mandando mensagens e aí em uma de nossas conversas ele falou que estava com saudades e perguntou se podíamos nos ver…
– Vocês estavam trocando mensagens? — Eu interrompi ela. — Desde quando?
– Algumas semanas, mas eu de fato só fiz isso para alimentar o meu ego. Eu achava que depois de todo esse tempo eu tinha o controle da situação.
– Vic, eu não sei se é assim que funciona.
– Não é amiga! Claro que não é. — disse com arrependimento — Foi horrível. Eu acabei indo nesse encontro idiota e ele conseguiu me deixar ainda pior. Ficou me comparando com a ex dele, falando que nunca deveria ter me deixado e até confessou entrelinhas que tinha me traído com ela! — Vic se recompôs. — Foi a coisa mais estupida que eu poderia ter feito, me sinto um lixo.
– Espera, não é para tanto. Você não tem que se sentir mal por ele ser um babaca.
– Eu sei. Eu só me culpo por ter me colocado nessa situação. Eu não sei o que estava pensando… — Para algumas pessoas, Victória pode parecer dura mas sempre encarei esse seu jeito como uma honestidade intrínseca. Ela nunca iria te poupar de falar a verdade, mas porque ela também nunca se poupava dela. — Desculpa, eu não queria te encher com isso. Eu só não estou a fim de ficar ouvindo o que eu já sei.
– Logo você? A maior juíza de todo o grupo. — Ela riu e foi possível sentir um alívio. — Relaxa, eu não vou contar para ninguém.
– Por favor, não escreva no seu blog — ela disse rindo.
– Jamais! — respondi.
Eu e Vic conversamos por algumas horas no telefone. Mesmo que alguns meses tinham se passado, me senti quando nos encontrávamos depois do trabalho e conversávamos sobre tudo o que tinha acontecido desde a última vez que saímos. Ela me perguntou como estava minha vida no Porto, minhas aulas, se eu estava saindo com alguém e, como sempre, alimentava minhas ideias delusionals e me dava um puxão de orelha quando começava meu drama. Victória me contou do seu emprego, da sua tão esperada graduação e outras coisas que me faziam rir e me sentir eu mesma ao conversar com ela.
Depois de eu ter guardado as compras, limpado a cozinha e preparado meu almoço, concordamos que as informações estavam atualizadas.
– Amiga, estou com saudade das nossas conversas no Caracol até as 2 horas da manhã. — Eu disse antes de Vic se despedir.
– Que mentira! — Ela disse séria — Desde e quando foi que a gente voltou para casa antes das 5 da manhã? — E pude ouvir seu tom sarcástico.
– Se cuida, está bem?
– Vou tentar. Beijos! — Vic desligou.
Ao descansar o celular na mesa, me visualizei sentada com o prato na minha frente. A cozinha ficou silenciosa novamente. Senti um leve aperto no peito, quase como um beliscão. Eu só queria que ela Victória estivesse ali naquele momento. Provavelmente, após o almoço, decidiríamos comprar algum vinha para assistir RuPaul’s Drag Race e criticar cada participante como se nós tivéssemos um dia o potencial para ser uma Drag.
Refleti sobre o que eu faria naquele dia, e decidi voltar ao plano inicial e não fazer absolutamente nada. Por mais que eu tinha trabalhos da faculdade para escrever, e-mails do trabalho para responder e tarefas de casa para fazer, eu dedicaria aquele dia à Vic, e celebraria ele da forma que ela mais gostava, na horizontal.
Morar em outro país tem seus desafios. Você passa a ter que se acostumar com outras pessoas e costumes. Muitas vezes vai se questionar o porquê está ali, e, se realmente tomou a decisão certa. Vai sentir saudade de muitas coisas e perder momentos importantes das pessoas que se ama. Porém, se tem uma coisa que eu aprendo através das minhas amizades é que não importa o tempo ou a distância, quando uma pessoa vale a pena, ela está ali aprendendo com você, correndo com você e eu agradeço todo o tempo por ter encontrado elas.
A.M.

Leave a comment